O Sistema Nacional de Saúde (SNS) é um dos pilares fundamentais de um estado social moderno, funcionando como um seguro de saúde para os seus cidadãos. Estes descontam na medida das suas possibilidades quando podem e são ajudados quando precisam, permitindo estabilizar o consumo e eliminar a incerteza, aumentando assim o bem-estar geral da sociedade. Uma ideia universalmente aceite em todo o mundo ocidental. Todo? Não! Um país povoado por irredutíveis americanos resiste ainda e sempre à ideia.
A previsível morte do Obamacare marca um retrocesso no caminho para um Sistema Nacional de Saúde (SNS) norte-americano. Fica assim a pergunta: O que torna os EUA tão aversos à adopção de um sistema que é tido como um dos mais fundamentais avanços civilizacionais na generalidade dos paises ocidentais?
A resposta recai inevitavelmente sobre o partido Republicano. É verdade que Trump fez da revogação do Obamacare uma das bandeiras da sua candidatura, mas, como sabemos, Trump teria dito o que o eleitorado Republicano quisesse ouvir. E a generalidade deste clamava pelo fim do plano de saúde de Obama.
As análises sobre os beneficiados são claras. A ausência de um SNS prejudica mais quem tem menos rendimentos e quem tem condições de saúde pré-existentes. Ao mesmo tempo, menos gastos com saúde significam menos impostos, o que, num estado com um sistema de impostos progressivo, acaba por beneficiar mais quem tem rendimentos mais altos.
Dito isto, o partido Republicano não alcançou quase 50 milhões de votos exclusivamente da classe alta. Muitos americanos de classe média e baixa, principalmente fora das grandes cidades, apoiam o partido Republicano e são contra o Obamacare.
Surge a pergunta inevitável: Porque são tantos republicanos contra um sistema que, tudo indica, os beneficiaria? É difícil explicá-lo estritamente do ponto de vista da ciência económica. Talvez os eleitores republicanos subestimem a sua probabilidade de vir a precisar de cuidados de saúde, ou talvez substimem os custos que esses cuidados podem comportar. Explicações que terão algo de verdade. No entanto, vale a pena analisar este fenómeno como sendo um processo de associação.
A maioria dos eleitores republicanos não terão a sofisticação para entender as complexidades socio-económicas inerentes à adopção de um SNS à imagem da maior parte dos paises da OCDE, mas entendem as posições dos maiores partidos americanos em questões sociais. Questões como o aborto, como a importância da religião na vida social, como as drogas, como a justiça. E isso basta. Para um conservador, estar de acordo com os Democratas, significa estar de acordo com aqueles que nestas questões defendem posições inaceitáveis. É mais fácil dividir o mundo em bons e maus e concordar com os bons em tudo, mesmo em questões que não entendemos bem.
E esta associação basta especialmente quando a realidade partidária é dicotómica. Um panorama político multipartidário com a existência de um partido conservador com um peso relevante a nível eleitoral a favor, no entanto, da criaçào de um SNS forte, poderia ajudar o eleitorado a dissociar as questões económicas das demais e torná-los mais receptivos a um plano similar ao Obamacare.
Este mecanismo é ainda reforçado actualmente por um contexto em que é cada vez mais fácil o eleitorado escolher as fontes de informação que tendem a cobrir as notícias de forma a reforçar o seu enviesamento político.
Neste ponto poderíamos perguntar-nos o que levou a esta realidade partidária dual nos Estados Unidos. A resposta a esta pergunta é interessante e encontra uma resposta convincente na própria estrutura do sistema eleitoral norte-americano, mas tomemos este factor como um dado adquirido desta análise. (Não resistindo, ainda assim, a deixar o link para este video que explica esta problemática de uma forma rápida, interessante e ilustrativa: https://www.youtube.com/watch?list=EC7679C7ACE93A5638&v=s7tWHJfhiyo )
Em vez disso, iremos mais fundo, mas noutro sentido. Nomeadamente, o de questionar a razão para a associação destas duas vertentes no espectro politico Esquerda-Direita.
É curioso constatar que no panorama político moderno, a esquerda tende a ser caractrizada por um certo paternalismo económico e liberalismo social, enquanto a direita é caracterizada por um liberalismo económico e um certo paternalismo social, muitas vezes alicerçado em valores religiosos. Há, decerto, ainda outras dimensões políticas relevantes, mas são estas as que normalmente assumem maior preponderância.
Afirmar sob este prisma que estas associações constituem um paradoxo seria um erro, na medida em que as questões são em larga medida independentes entre si. Não parece existir à partida uma relação de causalidade óbvia entre o conservadorismo de valores a uma ideia de liberalismo económico. A ideia de um socialista conservador ou de um capitalista liberal não são contra-sensos em si mesmo. De facto, não é dificil encontrar exemplos destes casos, apesar de serem a minoria. Ainda assim, não deixa de ser uma constatação que adensa o mistério sobre a razão para junção destas filosofias.
Para compreender esta relação, regressemos à génese dos termos Esquerda e Direita no contexto político. Estes nascem na Revolução Francesa, numa época onde a ciência económica ainda gatinhava, o que é revelador sobre a sua irrelevância na génese desta relação.
Na Assembleia Nacional durante o inicio da revolução aglomeravam-se à direita os membros da assembleia que defendiam o Ancién Regime, e à esquerda os que exigiam uma ordem social radicalmente diferente. No centro, os moderados.
A Direita assumia-se assim como a manifestação institucional dos interesses da ordem social vigente em todas as suas vertentes. A identificação desta direita com valores clericais, por exemplo, é uma consequência destes serem uma herança do regime anterior.
Da mesma forma, as politicas de cariz económico eram fruto dos interesses destas facções, e não sustentadas por uma ideologia económica. A Direita da revolução francesa não defendia o liberalismo económico. Pelo contrário, lutava em favor da manutenção dos privilégios da velha nobreza, ameaçada pelo aparecimento de uma burguesia que vinha a ganhar preponderância devido ao comércio livre.
A identificação destes sectores políticos com questões de cariz económico surge apenas mais tarde quando a nobreza já fazia parte do passado. Assim, partindo de um contexto de liberalismo económico como estado inicial da natureza, e tendo em conta o papel da direita como guardiã da ordem estabelecida, tornou-se natural que seja esta a adoptar para si a ideologia económica que visa a preservação do papel reduzido estado no contexto económico.
Este espectro político acabou por ser exportado para o resto do mundo democrático, incluindo os EUA.
À luz destas considerações, as associações inerentes à Esquerda e à Direita moderna ganham novo significado e revelam a origem primordial da tensão entre estas facções políticas: a postura em relação à mudança social.
Mais do que um espectro de ideologia económica ou de valores sociais, a relação Esquerda-Direita é, ainda hoje, um espectro que reflete primariamente o nível de aversão à mudança social, independentemente do seu tipo.
Isto afigura-se especialmente verdade quando a realidade política por virtude, por exemplo, de um bipartidarismo de longa data como é o norte-americano, força a compressão da política numa única dimensão. Os partidos vêem-se assim obrigados a demarcar o seu território ideológico em várias dimensões diferentes. Estas demarcações acabam por ser efectuadas obedecendo quase sempre ao mesmo critério: o do desejo ou resistência à mudança social.
A palavra conservador, tida normalmente como relativa a valores, acaba assim por ser apropriada para descrever a Direita até na sua globalidade. A Direita visa a conservação. Conservação dos valores, dos costumes, das tradições, como é normalmente interpretado, mas também a conservação de uma realidade económica e social. É exactamente isto que tenta fazer o partido republicano.
Nos EUA, o status quo sempre foi o conservadorismo cristão e o papel reduzido do estado. Não surpreende assim que a Direita americana na forma do partido Republicano se tenha apropriado destas como as suas principais bandeiras.
Ainda assim, fica a pergunta: em que são os EUA diferentes de outros países de forma a não terem desenvolvido um SNS quando outros o fizeram?
A resposta a esta pergunta tem várias vertentes. Outros países não terão um bipartidarismo tão vincado. Outros países não sofrem do contexto de uma união de estados que muitas vezes tenta travar o crescimento do estado federal, factor chave no desenvolvimento de um SNS. Outros países não terão prosperado tanto e durante tanto tempo num contexto de desregulação. Outros paises terão passado por mais episódios de instabilidade social (Crises e guerras em solo doméstico) que normalmente servem como catalizador de uma maior intervenção estatal.
É interessante verificar que o momento crucial para o desenvolvimento do estado social norte-americano foi a grande depressão e o consequente New Deal.
Ironicamente, é o sucesso económico e social dos EUA que surge assim como um dos principais entraves à adopção de um SNS que melhoraria substancialmente a vida da maioria dos seus cidadãos. Resta saber se os norte-americanos resistirão por muito mais tempo.